“Saudade” sem filtros

Não é fácil escrever sobre sentimentos. Mais difícil ainda é escrever sobre um sentimento que é uma mistura de tantos outros. “Saudade” é a palavra que define este misto de emoções, que tão bem caracterizam a alma portuguesa. Falar de saudade é evocar a época da expansão marítima, para definir a solidão que os lusitanos sentiam longe da pátria.


O significado da palavra poderá estar relacionado com uma certa melancolia, sentida devido à ausência ou desaparecimento, especialmente de pessoas, mas também de coisas, estados, ações ou até mesmo emoções. Todavia, saudade é algo bem mais abrangente, com sinónimos demasiado complexos. À pergunta “o que é a saudade?”, várias respostas se sobrepõem e nunca existirá uma definição uníssona para descrever esta sensação.

Mas do que sentiremos nós saudade? Sentir saudade é sentir falta de algo, que está longe ou que simplesmente já não está. Por isso, a palavra pode ser aplicada em referência a diversas situações. É possível sentir saudade de pessoas, de locais, de sabores, de cheiros, de sentimentos, de momentos, de um livro, de ações ou até de nós. Sim, de nós próprios. Daquilo que fomos ou poderíamos ter sido. Daquilo que fomos porque simplesmente o experimentámos e deixou-nos marcas acres ou adocicadas; daquilo que poderíamos ter sido porque, não o sendo, deixou em nós a nostalgia dos tempos idos e as lembranças que se misturam com riscos de realidade, já enraizados com traços de fantasia ou de mero capricho. Muitas são as vezes em que estamos nostálgicos. Saudade de quê? Não sabemos exprimir, simplesmente sentimos.

A saudade faz doer, chega a corroer porque a dor que não tem explicação aparente, consome. Uma saudade, não anula a outra. Coisas simples, rotinas vulgares podem gerar grande saudade.

Escrever é um monólogo que encerra em si várias sensações, mas a melhor que pode despoletar a quem está do outro lado é um ato de saudade, porque uma coisa é falar-se de saudade, outra coisa é sentir-se. Só quem sente sabe o que é. Sem saudade não existimos, somos amorfos. A nossa saudade não pode ser apenas uma lembrança, temos de contemplá-la, porque não podemos sentir saudades do que não vivemos. 
  
Saudade é uma das palavras mais presentes na poesia da língua portuguesa, é talvez a génese do Fado que tão bem nos caracteriza. Também aqui descreve a mistura de sentimentos de perda, falta, distância e amor.

São tantas as vezes que com desprimor nos esquecemos do sítio de onde vimos. São tantas as outras em que não valorizamos a “nação valente e imortal”. São ainda muitas mais as vezes em que não apreciamos o sentimento de pertença. Estou certa de que a saudade flui para nos fazer lembrar, é uma espécie de amor que nunca morre.

Termino evocando a diáspora lusa, com um pequeno excerto de uma crónica, intitulada “Portugal” de Miguel Esteves Cardoso:

«Estou há que séculos para te escrever. A primeira vez que dei por ti foi quando dei pela tua falta. Tinha 19 anos e estava na Inglaterra. De repente, deixei de me sentir um homem do mundo e percebi, com tristeza, que era apenas mais um dos teus desesperados pretendentes. Apaixonaste-me sem que eu desse por isso. Deve ter sido durante os meus primeiros 18 anos de vida, quando estava em Portugal e só queria sair de ti. Insinuaste-te. Não fui eu que te escolhi. Quando descobri que te amava, já era tarde de mais.» Miguel Esteves Cardoso, in Jornal Público, 10 Junho 2011.

É assim, sem filtros, a saudade. Muitas vezes só o presente não é suficiente, resta-nos o futuro para entender a saudade!

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