“A política ama a traição, mas despreza o traidor". Parece que quem o afirma é José Sócrates no seu novo livro “Só agora começou”, deixando transparecer que se avizinham novos capítulos, quem sabe até a canonização de um inocente.


A propósito dos mais recentes acontecimentos lembrei-me de um excerto do “Sermão do bom ladrão”, proferido, em 1655, pelo Padre António Vieira. Nele, critica "a arte de roubar", mostrando ao povo português como funcionava a roubalheira no Brasil (colónia). Segundo o mesmo, navegava Alexandre (Magno) numa poderosa armada pelo Mar Eritreu para conquistar a Índia quando foi trazido à sua presença um pirata, que por ali andava roubando os pescadores. Alexandre repreendeu-o muito por andar em tão mau ofício; porém ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu-lhe: “Basta, Senhor, que eu, porque roubo numa barca, sou ladrão, e vós, porque roubais numa armada, sois imperador?”

Roubar pouco é crime, roubar muito é grandeza. Roubar é para o cidadão comum, que não consegue pagar os seus impostos, que se atrasa no pagamento da prestação da casa, ou que, por meros segundos, entra em incumprimento com o Estado, pagando juros de mora, tal como os piratas do Padre António Vieira. Roubar, mas roubar muito, à descarada, é para os “Alexandres”. Séneca, filósofo, escritor e político romano, definiu-os com o mesmo nome: “se o rei de Macedónia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata; o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome”. Era assim no Império Romano e continua a ser no século XXI. Todos são ladrões.

De acordo com as regras de um Estado de Direito poderão existir falhas. Se concordo com o facto de qualquer cidadão ter direito à presunção de inocência, não concordo com o argumento “à política o que é da política e à justiça o que é da justiça". Não pode existir democracia, se a justiça não funcionar. Se os juízes e demais magistrados representam o povo, não será excessivo lembrar que os políticos também o representam. Quando o povo se sente defraudado com o funcionamento da justiça, depressa conclui que nem a política, nem a justiça, que são separadas por uma linha ténue, servem para nada e, por conseguinte, a democracia está posta em causa.

O juiz Ivo Rosa colocou a justiça ao nível de lixo, descredibilizando-a. A justiça foi julgada em praça pública e o resultado envergonhou a honra e o caráter de muitos portugueses.

O juiz decidiu que grande parte do processo da Operação Marquês não passará a julgamento, incluindo 25 dos 31 crimes de que José Sócrates era acusado. O antigo primeiro ministro vai a julgamento por três crimes de branqueamento de capital e três de falsificação de documentos. José Sócrates não vai ser julgado por nenhum dos crimes de corrupção ligados ao Grupo Espírito Santo, ao Grupo Lena e a Vale do Lobo. Também o ex-presidente do Grupo Espírito Santo, Ricardo Salgado, que estava acusado de 21 crimes, vai ser julgado por apenas três. Nem por corrupção ativa, nem por branqueamento de capitais, nem por falsificação de documentos, nem por fraude fiscal qualificada. O “Dono Disto Tudo”, que de tudo fez para salvar o seu império, vai a julgamento apenas por três crimes de abuso de confiança. Os mil e seiscentos lesados do BES que ainda não receberam qualquer indemnização, pecaram por confiar!

O antigo primeiro-ministro, em declarações à SIC, garante que vai defender-se das acusações que restam contra si no processo da Operação Marquês. "O mais importante foi que aquelas acusações que pesavam sobre mim, e que diziam respeitam ao meu Governo, todas essas caíram e com um estrondo que se ouviu longe". Acredito que este estrondo ecoou na alma de muitos portugueses honestos, que não terão apartamentos em Paris, que nada saberão do TGV e que não terão qualquer tipo de relação com Ricardo Salgado, a não ser os que abusaram da sua confiança.

Não é necessário ser-se juiz para perceber que uma fundamentação nunca deverá ter por base os nossos amigos. Em relação a Sócrates, os que com ele constituem Governo, os que beneficiavam dos seus esquemas e influências, desde empresários a gestores. Todos residiam na mesma teia.

Sobre os crimes de fraude fiscal de que estava acusado, Ivo Rosa explicou que o arguido José Sócrates não iria ser pronunciado porque “inexiste qualquer norma legal no nosso ordenamento jurídico que imponha a um cidadão a obrigação de declarar, em sede de IRS, os proventos obtidos com o cometimento de um crime”. É com base nestes argumentos que o juiz Ivo Rosa vem dizer aos portugueses que devem confiar na justiça?

Todos ficámos com a sensação de que Ivo Rosa se serviu de todos os argumentos para destruir a acusação do Ministério Público.

Talvez o juiz Ivo Rosa tenha baseado a sua fundamentação no provérbio associado à história “Ali Babá e os Quarenta Ladrões”, ou seja, “ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão”, julgando que os ladrões são os quase 10,28 milhões de portugueses e tudo acaba com um final feliz! A justiça prescreveu, mas a história será implacável.

Sócrates diz ter sido alvo de uma campanha de difamação ao longo destes sete anos, mas garante que só falará no momento certo. Citando uma frase do político brasileiro Ulysses Guimarães, o antigo primeiro ministro refere: “A política ama a traição, mas despreza o traidor". Qual será a traição e quem será o traidor? Segundo o próprio isto “Só agora começou”!