DUROS
Tiveram cancro, mesmo antes de saberem o que a palavra significava. Outros já retiraram da memória qualquer lembrança. Foi há muito tempo, mas todos têm algo em comum: são DUROS. Todos os anos voltam, adolescentes, jovens e adultos, ao lugar onde foram “nenucos” carecas e crianças pálidas. Vão ao IPO de Lisboa à consulta dos DUROS, ou seja Doentes que Ultrapassaram a Realidade Oncológica com Sucesso. Após cinco anos sem qualquer sinal físico da doença, conquistam este "estatuto". Sim, ser um dos DUROS é um estatuto que infelizmente ainda não é para todos. A sugestão partiu de um pai e o nome não podia ser melhor, aliado ao logótipo que imita as letras do Super-Homem. O objetivo desta consulta é a vigilância a longo prazo, não só para acompanhar o seu percurso, mas também para adquirir mais conhecimentos sobre os possíveis efeitos secundários dos tratamentos, com vista a um melhor ajuste das terapêuticas. Todos os anos revivem (ou não) memórias, reveem pessoas que foram inexcedíveis e excecionais pela forma como os acolhem, acolheram e consolaram.
Falar de cancro continua a ser difícil, mas falar de cancro
pediátrico é ainda mais doloroso. Há cada vez mais crianças a sofrerem de doença
oncológica. Ter cancro é limitar-lhes a exploração da vida. Quem mais do que
uma criança para explorar o mundo? E este mundo não cabe em palavras.
Depois existem os pais, que têm mais memória. O seu papel
é de tal forma importante que mesmo passados dez, quinze ou mais anos as marcas
desta doença são também suas. São uma soma de marcas físicas que esta neoplasia
maligna deixou e um conjunto de memórias dos progenitores que os acompanharam.
Outros nem lembranças têm, porque simplesmente a memória não lhas permite ter.
Os pais têm as memórias dos filhos, rigorosamente arquivadas, ainda mais nos casos
em que o diagnóstico remonta aos primeiros meses de vida. E quando digo
memórias, incluo tudo o que elas representam: um turbilhão de emoções, um
questionar incessante, um sofrimento descomedido, revolta, angústia, desespero
e uma força supra-humana.
Desse tempo, alguns meninos não recordam nada, mas os
pais retêm a quimioterapia, o isolamento, as visitas dos “Doutores Palhaços”,
os cateteres, as agulhas, as picadas constantes e tantos e tantos rostos que por lá vão
continuando.
E o que ficou? O que fica de mais importante talvez
não sejam os tratamentos em si, nem a forma como essa evidência de risco de vida
foi vivida pela criança, mas sim pela sua família e pelo recordar constante de
como é difícil “viver um dia de cada vez”.
Em Portugal, mais de 400 mil pessoas já tiveram uma
doença oncológica e sobreviveram, continuando, ou não, em tratamentos.
Estima-se que em 2030 um em cada mil adultos seja um sobrevivente de uma doença
oncológica que surgiu até aos 18 anos.
Quando se fala nas consequências do cancro
pediátrico, além das sequelas físicas, não podem ser esquecidas as
psicossociais. Os pais superprotegem os filhos, sim é um facto. É inevitável
que isso aconteça. Há uma crise de vida para a criança, há uma impotência
permanente para os pais por não conseguirem protegê-los contra aquela adversidade.
Depois, há o choque, a negação e o retomar da vida interrompida por um
diagnóstico difícil.
No IPO de Lisboa cruzam-se várias idades, fins de
vida e recomeços. Histórias sempre duras, mas com seres humanos ainda mais
duros. Existem pais que, embora tenham vivido verdadeiros casos de
sucesso, não conseguem voltar ali, ao IPO, porque neste centro de excelência
existe um universo à parte, onde a vida é muito difícil e posta à prova. Todavia, este local
assustador é uma verdadeira antítese e continua a ser especial para muitos outros.
É um facto que, cada vez mais, as crianças sobrevivem
ao cancro. Muitas vezes, são esses pequenos heróis que nos ajudam a transformar
a realidade e, com a sua força, ensinam-nos a despertar para uma nova vida ou
pelo menos a vê-la de forma diferente. Se os heróis existem? Claro! Todos temos
um!
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