Dia de luto pelas vítimas de violência doméstica e o juiz Neto de Moura

Neto de Moura e o dia de luto pelas vítimas de violência doméstica. A frase, à primeira vista em tudo antagónica, não o será assim tanto se pensarmos que esse flagelo precisa de muito mais do que um dia de luto nacional e de muito menos juízes como Neto de Moura. 


Quando o País assinala um dia de luto nacional pelas vítimas de violência doméstica, o primeiro-ministro António Costa escreveu na sua conta do Twitter que a violência doméstica tem de ter um fim e salienta que o combate a este fenómeno é um desafio coletivo da sociedade e que a evocação das vítimas constitui um começo da ação. Quanto ao fim, lamento mas não está à vista. Quanto ao desafio coletivo, concordo. Desafio para o qual os sucessivos governos nada têm contribuído. O relatório mais recente da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), de 2016, aponta para uma média de 100 mulheres por semana vítimas de violência doméstica. Estes números baseiam-se nos casos conhecidos, mas e a violência silenciosa? 

Por ciúme doentio, por vingança, espancadas, abatidas a tiro de caçadeira, atacadas com arma branca, assim foram mortas 12 mulheres que já fazem parte da lista negra de 2019. “Evocar as vítimas é começar a agir”, refere António Costa. Agir? De que forma? Várias queixas chegam à polícia e são desvalorizadas pelo Ministério Público. Muitas destas vítimas já se encontravam referenciadas, já tinham apresentado queixa e continuaram sucessivamente sem um plano de segurança para as proteger, quando se encontravam num risco de vida iminente. Exemplos há em que a vítima e o agressor foram convocados para uma audição no mesmo dia, ou seja uma vítima de violência doméstica é obrigada a estar no mesmo espaço do seu agressor. 

“6 de março de 2019. Ana Paula Comanda, 39 anos, foi morta pelo marido na casa onde ambos viviam na freguesia de Salamonde, em Vieira do Minho, Braga. Embora o presidente da associação de bombeiros locais tenha referido que os conflitos entre o casal eram frequentes, o caso não foi denunciado e acabou com Ana Paula a ser estrangulada pelo marido. Ainda na mesma noite do homicídio, o marido confessou o crime no posto da GNR de Braga, onde se foi entregar.” (Fonte: Diário de Notícias

A violência doméstica é um crime público, desde 2000. Por ser crime público, não é necessário que seja o lesado a apresentar queixa. Qualquer um pode denunciar. No entanto, dados de 2012 a 2015 revelam que mais de 80% dos casos são arquivados. Perante tais evidências, muitos preferem olhar para o lado e fazer jus ao ditado “entre marido e mulher ninguém mete a colher”. 

O primeiro ministro de Portugal escreveu ainda na sua conta pessoal: "A violência doméstica é uma grande tragédia que assinalamos com o luto nacional, evocando na perda das vidas e no sofrimento das vítimas que não aceitamos viver numa sociedade que silencia e que ignora". Silencia e ignora? Sim, é verdade. A começar pelos 80% dos casos arquivados pelo Ministério Público que até referencia, mas não protege e age tarde demais. 

Não pretendo contribuir para o massacre público do juiz Neto de Moura. Que fique claro, não por ter medo de ser processada, mas porque não estando verdadeiramente informada, não posso julgar, mas sim repudiar. "No Corão proclama-se que as mulheres foram criadas para os homens, são seres inferiores e imperfeitos e capazes de grandes astúcias", lê-se. E continua: "Mulheres virtuosas são mulheres obedientes. Os homens podem bater-lhes, mas, desde que obedeçam, não procurarão mais motivos de querela". Por fim, lembra, "na Bíblia prega-se a mesma atitude submissa da mulher." Estas palavras e expressões usadas pelo juiz no polémico acórdão do Tribunal da Relação do Porto, em outubro de 2016, sobre um caso de violência doméstica, fazem-nos regressar ao homem das cavernas. Embora descontextualizadas, repito, nem merecem ser comentadas, por serem inapropriadas, fossilizadas e machistas. Pôs-se a jeito. 

Espero que a polémica em torno de Neto de Moura ajude a perceber o verdadeiro estado da Justiça, lembrando que o Senhor Juiz não estará porventura isolado no corporativismo que analisa os acórdãos e sentenças sobre violência doméstica. 

Para terminar relembro as frases atribuídas nos media a Joana Ferrer, a juíza do Tribunal Criminal de Lisboa, que presidiu ao caso em que Manuel Maria Carrilho foi acusado de violência doméstica contra a ex-mulher, Bárbara Guimarães, e que terão sido ditas na primeira sessão do julgamento. Tratando sempre Bárbara Guimarães como "Bárbara" e Carrilho como "o professor", a juíza Joana Ferrer aludiu: "Ó Bárbara, causa-me nervoso ver mulheres informadas a reagirem assim. Se tinha fundamento, devia ter feito queixa", ou: "Confesso que estive a ver fotografias do vosso casamento e tudo parecia maravilhoso. Parece que o Professor Carrilho foi um homem, até ao nascimento da Carlota [a segunda filha do casal], e depois passou a ser um monstro. Ora o ser humano não muda assim". Não evocando o homem das cavernas, estas observâncias deixam transparecer, com desajustado requinte, uma imparcialidade que em nada se coaduna com a ética de um juiz, que não deve assentar na prepotência, na arrogância e no autoritarismo. Já dizia Jean-Paul Sartre, filósofo francês, “a violência, seja qual for a maneira como se manifesta, é sempre uma derrota”! 


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