“A política ama a traição, mas despreza o traidor"

/ abril 12, 2021

“A política ama a traição, mas despreza o traidor". Parece que quem o afirma é José Sócrates no seu novo livro “Só agora começou”, deixando transparecer que se avizinham novos capítulos, quem sabe até a canonização de um inocente.


A propósito dos mais recentes acontecimentos lembrei-me de um excerto do “Sermão do bom ladrão”, proferido, em 1655, pelo Padre António Vieira. Nele, critica "a arte de roubar", mostrando ao povo português como funcionava a roubalheira no Brasil (colónia). Segundo o mesmo, navegava Alexandre (Magno) numa poderosa armada pelo Mar Eritreu para conquistar a Índia quando foi trazido à sua presença um pirata, que por ali andava roubando os pescadores. Alexandre repreendeu-o muito por andar em tão mau ofício; porém ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu-lhe: “Basta, Senhor, que eu, porque roubo numa barca, sou ladrão, e vós, porque roubais numa armada, sois imperador?”

Roubar pouco é crime, roubar muito é grandeza. Roubar é para o cidadão comum, que não consegue pagar os seus impostos, que se atrasa no pagamento da prestação da casa, ou que, por meros segundos, entra em incumprimento com o Estado, pagando juros de mora, tal como os piratas do Padre António Vieira. Roubar, mas roubar muito, à descarada, é para os “Alexandres”. Séneca, filósofo, escritor e político romano, definiu-os com o mesmo nome: “se o rei de Macedónia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata; o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome”. Era assim no Império Romano e continua a ser no século XXI. Todos são ladrões.

De acordo com as regras de um Estado de Direito poderão existir falhas. Se concordo com o facto de qualquer cidadão ter direito à presunção de inocência, não concordo com o argumento “à política o que é da política e à justiça o que é da justiça". Não pode existir democracia, se a justiça não funcionar. Se os juízes e demais magistrados representam o povo, não será excessivo lembrar que os políticos também o representam. Quando o povo se sente defraudado com o funcionamento da justiça, depressa conclui que nem a política, nem a justiça, que são separadas por uma linha ténue, servem para nada e, por conseguinte, a democracia está posta em causa.

O juiz Ivo Rosa colocou a justiça ao nível de lixo, descredibilizando-a. A justiça foi julgada em praça pública e o resultado envergonhou a honra e o caráter de muitos portugueses.

O juiz decidiu que grande parte do processo da Operação Marquês não passará a julgamento, incluindo 25 dos 31 crimes de que José Sócrates era acusado. O antigo primeiro ministro vai a julgamento por três crimes de branqueamento de capital e três de falsificação de documentos. José Sócrates não vai ser julgado por nenhum dos crimes de corrupção ligados ao Grupo Espírito Santo, ao Grupo Lena e a Vale do Lobo. Também o ex-presidente do Grupo Espírito Santo, Ricardo Salgado, que estava acusado de 21 crimes, vai ser julgado por apenas três. Nem por corrupção ativa, nem por branqueamento de capitais, nem por falsificação de documentos, nem por fraude fiscal qualificada. O “Dono Disto Tudo”, que de tudo fez para salvar o seu império, vai a julgamento apenas por três crimes de abuso de confiança. Os mil e seiscentos lesados do BES que ainda não receberam qualquer indemnização, pecaram por confiar!

O antigo primeiro-ministro, em declarações à SIC, garante que vai defender-se das acusações que restam contra si no processo da Operação Marquês. "O mais importante foi que aquelas acusações que pesavam sobre mim, e que diziam respeitam ao meu Governo, todas essas caíram e com um estrondo que se ouviu longe". Acredito que este estrondo ecoou na alma de muitos portugueses honestos, que não terão apartamentos em Paris, que nada saberão do TGV e que não terão qualquer tipo de relação com Ricardo Salgado, a não ser os que abusaram da sua confiança.

Não é necessário ser-se juiz para perceber que uma fundamentação nunca deverá ter por base os nossos amigos. Em relação a Sócrates, os que com ele constituem Governo, os que beneficiavam dos seus esquemas e influências, desde empresários a gestores. Todos residiam na mesma teia.

Sobre os crimes de fraude fiscal de que estava acusado, Ivo Rosa explicou que o arguido José Sócrates não iria ser pronunciado porque “inexiste qualquer norma legal no nosso ordenamento jurídico que imponha a um cidadão a obrigação de declarar, em sede de IRS, os proventos obtidos com o cometimento de um crime”. É com base nestes argumentos que o juiz Ivo Rosa vem dizer aos portugueses que devem confiar na justiça?

Todos ficámos com a sensação de que Ivo Rosa se serviu de todos os argumentos para destruir a acusação do Ministério Público.

Talvez o juiz Ivo Rosa tenha baseado a sua fundamentação no provérbio associado à história “Ali Babá e os Quarenta Ladrões”, ou seja, “ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão”, julgando que os ladrões são os quase 10,28 milhões de portugueses e tudo acaba com um final feliz! A justiça prescreveu, mas a história será implacável.

Sócrates diz ter sido alvo de uma campanha de difamação ao longo destes sete anos, mas garante que só falará no momento certo. Citando uma frase do político brasileiro Ulysses Guimarães, o antigo primeiro ministro refere: “A política ama a traição, mas despreza o traidor". Qual será a traição e quem será o traidor? Segundo o próprio isto “Só agora começou”!

“A política ama a traição, mas despreza o traidor". Parece que quem o afirma é José Sócrates no seu novo livro “Só agora começou”, deixando transparecer que se avizinham novos capítulos, quem sabe até a canonização de um inocente.


A propósito dos mais recentes acontecimentos lembrei-me de um excerto do “Sermão do bom ladrão”, proferido, em 1655, pelo Padre António Vieira. Nele, critica "a arte de roubar", mostrando ao povo português como funcionava a roubalheira no Brasil (colónia). Segundo o mesmo, navegava Alexandre (Magno) numa poderosa armada pelo Mar Eritreu para conquistar a Índia quando foi trazido à sua presença um pirata, que por ali andava roubando os pescadores. Alexandre repreendeu-o muito por andar em tão mau ofício; porém ele, que não era medroso nem lerdo, respondeu-lhe: “Basta, Senhor, que eu, porque roubo numa barca, sou ladrão, e vós, porque roubais numa armada, sois imperador?”

Roubar pouco é crime, roubar muito é grandeza. Roubar é para o cidadão comum, que não consegue pagar os seus impostos, que se atrasa no pagamento da prestação da casa, ou que, por meros segundos, entra em incumprimento com o Estado, pagando juros de mora, tal como os piratas do Padre António Vieira. Roubar, mas roubar muito, à descarada, é para os “Alexandres”. Séneca, filósofo, escritor e político romano, definiu-os com o mesmo nome: “se o rei de Macedónia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata; o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar, e merecem o mesmo nome”. Era assim no Império Romano e continua a ser no século XXI. Todos são ladrões.

De acordo com as regras de um Estado de Direito poderão existir falhas. Se concordo com o facto de qualquer cidadão ter direito à presunção de inocência, não concordo com o argumento “à política o que é da política e à justiça o que é da justiça". Não pode existir democracia, se a justiça não funcionar. Se os juízes e demais magistrados representam o povo, não será excessivo lembrar que os políticos também o representam. Quando o povo se sente defraudado com o funcionamento da justiça, depressa conclui que nem a política, nem a justiça, que são separadas por uma linha ténue, servem para nada e, por conseguinte, a democracia está posta em causa.

O juiz Ivo Rosa colocou a justiça ao nível de lixo, descredibilizando-a. A justiça foi julgada em praça pública e o resultado envergonhou a honra e o caráter de muitos portugueses.

O juiz decidiu que grande parte do processo da Operação Marquês não passará a julgamento, incluindo 25 dos 31 crimes de que José Sócrates era acusado. O antigo primeiro ministro vai a julgamento por três crimes de branqueamento de capital e três de falsificação de documentos. José Sócrates não vai ser julgado por nenhum dos crimes de corrupção ligados ao Grupo Espírito Santo, ao Grupo Lena e a Vale do Lobo. Também o ex-presidente do Grupo Espírito Santo, Ricardo Salgado, que estava acusado de 21 crimes, vai ser julgado por apenas três. Nem por corrupção ativa, nem por branqueamento de capitais, nem por falsificação de documentos, nem por fraude fiscal qualificada. O “Dono Disto Tudo”, que de tudo fez para salvar o seu império, vai a julgamento apenas por três crimes de abuso de confiança. Os mil e seiscentos lesados do BES que ainda não receberam qualquer indemnização, pecaram por confiar!

O antigo primeiro-ministro, em declarações à SIC, garante que vai defender-se das acusações que restam contra si no processo da Operação Marquês. "O mais importante foi que aquelas acusações que pesavam sobre mim, e que diziam respeitam ao meu Governo, todas essas caíram e com um estrondo que se ouviu longe". Acredito que este estrondo ecoou na alma de muitos portugueses honestos, que não terão apartamentos em Paris, que nada saberão do TGV e que não terão qualquer tipo de relação com Ricardo Salgado, a não ser os que abusaram da sua confiança.

Não é necessário ser-se juiz para perceber que uma fundamentação nunca deverá ter por base os nossos amigos. Em relação a Sócrates, os que com ele constituem Governo, os que beneficiavam dos seus esquemas e influências, desde empresários a gestores. Todos residiam na mesma teia.

Sobre os crimes de fraude fiscal de que estava acusado, Ivo Rosa explicou que o arguido José Sócrates não iria ser pronunciado porque “inexiste qualquer norma legal no nosso ordenamento jurídico que imponha a um cidadão a obrigação de declarar, em sede de IRS, os proventos obtidos com o cometimento de um crime”. É com base nestes argumentos que o juiz Ivo Rosa vem dizer aos portugueses que devem confiar na justiça?

Todos ficámos com a sensação de que Ivo Rosa se serviu de todos os argumentos para destruir a acusação do Ministério Público.

Talvez o juiz Ivo Rosa tenha baseado a sua fundamentação no provérbio associado à história “Ali Babá e os Quarenta Ladrões”, ou seja, “ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão”, julgando que os ladrões são os quase 10,28 milhões de portugueses e tudo acaba com um final feliz! A justiça prescreveu, mas a história será implacável.

Sócrates diz ter sido alvo de uma campanha de difamação ao longo destes sete anos, mas garante que só falará no momento certo. Citando uma frase do político brasileiro Ulysses Guimarães, o antigo primeiro ministro refere: “A política ama a traição, mas despreza o traidor". Qual será a traição e quem será o traidor? Segundo o próprio isto “Só agora começou”!
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O sonho, uma realidade pretendida por muitos, mas alcançada por alguns. Um desejo persistente e também enlouquecedor.


Vou contar-vos a história de uma criatura que é simplesmente a que habita o reino dos sonhos. Como poderá ser? Azul, como o oceano que nos rodeia, ou amarela como o sol que nos ilumina? Com uma capa preta, idêntica à escuridão ou com umas asas que representam a vida? Já decidi, terá uma capa e será amarela. Agora vou falar-vos do menino que alcançou o reino dos sonhos.

- Bom dia mãe!

- Olá filho! Pronto para ir para a escola?

- Sim, mãe!

Então lá foi o nosso rapaz aprender, mostrar a sua imensa sabedoria e a bondade que o acompanhava todos os dias.

Certo dia, este rapaz chamou à atenção da criatura dos sonhos, que, admirada, comentou:

- Aquele rapaz é espetacular, a sua bondade é comovente, as suas atitudes ultrapassam o meu poder, ele é merecedor dos seus sonhos. E assim o rapaz foi chamado a outra realidade.

- Quem és tu e o que queres de mim?

- Calma rapaz, eu represento os sonhos. Observei-te e pergunto-te como é que tu és fonte de tanta bondade?

- Senhor, eu penso que as nossas palavras são a nossa maior fonte de magia.

- Uma teoria interessante!

- Senhor?

- Sim, diz?

- Isto está realmente a acontecer-me ou é apenas na minha cabeça, ou ...

- Decide tu! Alcançaste a barreira dos sonhos e estás a falar comigo. Agora tenho de ir-me embora, vai viver a tua vida e continuarás a ser o homem mais bondoso do mundo, tal como nos teus sonhos. Sabes, às vezes é difícil distinguir o sonho da realidade, confundem-se!

A conversa entre ambos terminou assim, cada um seguiu o seu caminho.

Eu penso que a realidade e o sonho são do mesmo tamanho, ambos são enormes, tal como a bondade, a persistência, a simpatia e muitas outras qualidades. Como Albert Einstein disse:

“Não existem sonhos impossíveis.” O futuro pertence aqueles que não desistem de sonhar.

Autor: Simão Antão







O Sonho

by on março 22, 2021
O sonho, uma realidade pretendida por muitos, mas alcançada por alguns. Um desejo persistente e também enlouquecedor. Vou contar-vos a histó...

Quatro lugares à mesa, tudo pronto para a consoada, mas uma estranha sensação de vazio invade esta celebração. Natal é a festa da família e dos afetos. E quando a família não está completa? Como lidar com isso? Depois de um ano tão atípico, com todos os constrangimentos que a COVID-19 nos trouxe, o Natal de 2020 é, certamente, diferente e as famílias sentem-se obrigadas a estar mais afastadas do que nunca. 


A 31 de dezembro de 2019, a Organização Mundial de Saúde dava conta de que mais de duas dezenas de casos de pneumonia de origem desconhecida tinham sido detetados na cidade chinesa de Wuhan, na província de Hubei. Tratava-se então de uma doença anónima e distante, que infetava e matava pessoas do outro lado do mundo. Um ano depois, à escala mundial, já morreram mais de um milhão de pessoas e ficaram infetadas mais de 55 milhões. O álcool gel e a máscara substituíram os beijos e os abraços.

Mas o Natal continua a ser tempo de dar, de receber, de distribuir sorrisos. É a época em que o amor parece renascer dos pequenos gestos, mas é por defeito a celebração em que as vulnerabilidades ganham mais significado e intensidade. Não é apenas uma questão de presença física, mas sim de ausência. Através da família desenvolvemos os primeiros laços com o mundo, recebemos os valores básicos e as atitudes que estruturam a nossa personalidade e alicerçaram o nosso compromisso com a vida. É na família que construímos a nossa identidade. Se a socialização é crucial para o ser humano, é uma questão de sobrevivência para a família.

Este ano, na noite de consoada, haverá lugares vazios em tantas mesas, uma saudade que ficou, um sentimento enorme daquilo que já foi, mas que continua a ocupar muito espaço dentro dos corações. Existirão memórias, umas doces, outras amargas, mas é Natal e tudo deveria transformar-se numa amena magia!

O pinheiro foi decorado, as figuras principais do presépio também marcam presença, mas a estrela não brilha como em outros natais. O novo coronavírus não tem contemplações, é implacável para os que se entregam aos afetos. Esta é uma realidade que não deixa dúvidas, nem espaço para grandes celebrações. Em 2020, muitas pessoas vão escolher passar o Natal longe do resto da família. Na base dessa decisão está um ato de amor e um sentido de proteção.

Continuo a acreditar que a melhor mensagem de Natal é aquela que sai em silêncio de dentro de nós e que aquece com ternura os corações daqueles que nos acompanham na nossa caminhada. Ouçamos o silêncio, mas é tão avassalador e cheio de interrogações! Valerá o esforço? Teremos outros natais? Nunca, como neste ano, vimos tão pouco os nossos pais e avós. Nunca, como neste ano, fomos tão privados dos afetos. Nunca, como neste ano, as celebrações familiares adotaram contornos tão severos.

No dia 2 de março foram confirmados os dois primeiros casos de Covid-19 em Portugal.
Os meses passaram e fomos sendo subjugados por um "novo normal". Portugal é dos poucos países em que a segunda vaga está a matar mais do que a primeira. Por detrás dos números estavam pessoas com rosto, com nome, com família. Quebraram-se os laços.  Quando se fala em mudanças, não poderemos enumerá-las. O mundo transformou-se drasticamente. 

A 8 de dezembro, Margareth Keenan, uma inglesa de 90 anos, foi a primeira pessoa a ser oficialmente vacinada com a vacina da BioNTech-Pfizer. A esta vacina juntaram-se outras de vários projetos e laboratórios.

A ciência e o trabalho perseverante de muitos investigadores espalhados pelo mundo são absolutamente extraordinários. Será este o princípio do fim? Finalmente, existe uma luz ao fundo do túnel, mas o caminho ainda é penoso. Vivem-se tempos contraditórios em que alguns ainda continuam a insistir que a Terra é plana. Os nossos comportamentos individuais continuarão a fazer diferença entre a vida e a morte, a nossa, a dos nossos e a dos outros. Acredito que iniciámos uma nova era, onde os sorrisos deixarão de ser opacos e passarão a ter cor.

Entretanto é Natal, celebremos a saúde e a vida! As saudades são exponenciais e ampliam a falta dos abraços, mas o mais importante será sempre celebrar mais um Natal e o amor que nos une. 

Termino evocando Ary dos Santos: 

«Natal é em dezembro
Mas em maio pode ser
Natal é em setembro
É quando um homem quiser…»

Feliz Natal!

"Fica no cimo de Portugal, como os ninhos ficam no cimo das árvores para que a distância os tome mais impossíveis e apetecidos". Hoje invoco Miguel Torga porque ao fazê-lo celebro as minhas origens, o mais íntimo do meu ser, as minhas gentes. 
“Embora muitas pessoas digam que não, sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo.” Trás-os-Montes é, segundo Torga, um desses reinos que todos podem ver, desde que "os olhos não percam a virgindade original diante da realidade e o coração, depois, não hesite". Miguel Torga pode estar certo de que ninguém hesitará perante reino tão sublime! 

Mas quem foram os primeiros transmontanos? Muito antes das invasões romanas, por volta de 218 a.C. sabe-se que já habitavam na Península Ibérica os povos Ibéricos. Para melhor entender a origem transmontana, é necessário fazer uma viagem ao passado, até à pré-história da Península Ibérica. Ser transmontano é carregar, assim, séculos de história de um reino e das suas gentes singulares, é reconhecer o cheiro da urze e perceber que apenas o céu é o limite. É não esquecer o aroma da terra quando chove nas tardes quentes de verão e o chilrear dos pardais quando desperta a primavera. 

Todos temos fraquezas e fragilidades. Talvez as encaremos de forma diferente, em alturas distintas. As circunstâncias tornam-nos mais autênticos e mais conscientes das nossas fraquezas. O carácter guerreiro e lutador dos transmontanos não nos impede de demonstrar a nossa fragilidade. A imperfeição é uma caraterística dos mais fortes. 

Nasci com um pé na terra e outro no céu, escalei fragas e montanhas, escrevi poesia e, nas entrelinhas, pude perceber, desde muito cedo, a importância da dureza e da coragem. No interior não existem verdades fáceis, há apenas honestidade e franqueza de carácter. Os transmontanos conheceram bem (ou continuam a conhecer) o peso da interioridade. 

Sente-se um calafrio. A vista perde-se de deslumbramento, nada é comparável ao grande “oceano megalítico”. A cada regresso, encontro novamente o mais alto grau de paz interior, numa conexão plena com a natureza, com a minha consciência, sem nunca esquecer os alicerces que me moldaram o caráter. 

Passemos de novo a Miguel Torga. 
“- Entre! 
A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso”. 

Em Trás-os-Montes existe mística e harmonia, dureza estampada em cada fissura, fé inabalável na natureza. Assim como as estações, a vida tem ciclos. Existirão sempre os dias e as memórias antigas de um verão repleto de risadas, de muitas aventuras e de calor. Mas, depois do verão, ficaram as memórias eternas dos que já partiram, do outono tisnado e do inverno gelado, com sabor a lareira, a castanhas e jeropiga, e a dias de chuva e de neve carregados de tantos afetos! Depois, a primavera volta a chegar. A vida ganha novo fôlego, e as circunstâncias mudam. 

O nome transmontano quer dizer filho de Trás-os-Montes, e, tal como Miguel Torga, este é o meu o Reino Maravilhoso. 

A terminar recupero uma frase de José Saramago: “nós somos muito mais da terra onde nascemos, e onde fomos criados, do que imaginamos”. Ser transmontana não é uma coincidência, é um privilégio! 

Os alunos desenvolvem o seu processo educacional em dois grupos distintos: a família e a escola. Em família, vivem e compartilham as experiências pessoais, os seus medos e receios. No universo escolar, devem aprender a ser pessoas livres e felizes, assertivas e solidárias. É fundamental o exercício da criatividade, como elemento de impulsão no processo educativo. A propósito, partilho convosco um texto elaborado pelo meu filho Simão, que frequenta o 6ºano, para a disciplina de Português, inspirado num desenho a carvão, também feito por si. 

Para se poder ser membro irrepreensível de um rebanho de carneiros é preciso, antes de mais, ser-se carneiro. Segundo Albert Einstein, “criatividade é inteligência, divertindo-se”. Estará a escola preparada?


«A história que vou contar-vos fala sobre uma cidade, mas não sobre qualquer uma, esta é a cidade da vida. Está no alto do céu e é transportada por uma grande águia, que tem olhos azuis como o mar e uma plumagem de espantar qualquer um. Leva agarrada a si uma lanterna que simboliza a luz. 

Esta cidade não é habitada por humanos, mas sim por anjos e todos os outros seres que não fazem mal ao mundo. Por sua vez, a cidade tem poucos prédios, mas há espaço para todos. 

Um certo dia, a morte foi confrontar a vida. Então foi à cidade e transformou tudo o que era belo e iluminado, num sítio frio e escuro. Os anjos lutaram contra os demónios e as águias contra os cavalos do mal. A morte parecia querer acabar com tudo e com todos, a terra ficou assombrada. A felicidade refletiu-se em tristeza e o amor em ódio. 

Porém, a vida começou a revigorar-se e conseguiu destruir as trevas que habitavam a terra e a felicidade voltou. A vida voou de novo para o céu e com a sua força atacou o mal que lá residia, derrubando tudo o que lhe fazia frente. Os anjos morreram e a vida quase tinha desaparecido, mas de repente, provando que os milagres existem, tudo ressuscitou. A vida voltou, as trevas morreram e tudo se transformou no paraíso. 

A vida sempre ganhará, ela consegue acabar com o mal do mundo e nós somos muitas vezes a prova disso mesmo, ajudando os que mais precisam. Infelizmente, os humanos também contribuem para a morte, por exemplo de muitas espécies do nosso planeta, e ao fazerem mal uns aos outros. 

Existe apenas uma certeza, a de que todos devemos lutar para construir o amor porque ele é a nossa maior arma. Muitas vezes não percebemos que as cicatrizes que não conseguimos ver são as mais difíceis de curar, mas o amor tudo supera!» 

Texto e desenho a carvão: Simão Antão, 11 anos

A vida sempre ganhará

by on novembro 04, 2020
Os alunos desenvolvem o seu processo educacional em dois grupos distintos: a família e a escola. Em família, vivem e compartilham as experiê...
Há um suicídio a cada 40 segundos. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde ocorrem cerca de 800 mil suicídios por ano, em todo o mundo. Porquê? Questionamos. O suicídio parece não ter explicações objetivas. Agride, aterroriza e silencia. O ser humano é feito de sombras que o perseguem. 


Em algum momento da vida, todos já equacionámos a morte. Se não desejámos morrer, ao menos refletimos sobre ela para escapar ao sofrimento ou para exigir atenção. Dentro da nossa coerência, o suicídio surge como um ato de loucura, uma opção contranatura, em que a vítima e o agressor são a mesma pessoa. Por trás deste ato está um mundo indecifrável que não cabe em definições complexas, muito menos elementares. Há um interromper do ciclo natural da vida e uma luta incessante de “porquês” para os que cá ficam.

Segundo a Organização Mundial de Saúde, mais de 90% dos casos de suicídio concretizados estão relacionados com transtornos mentais, depressão e abuso de substâncias psicoativas. 

O apoio da família e dos amigos é essencial, mas o suicídio é quase sempre um grito mudo, uma dor silenciosa, um caminho sem sentido cuja prevenção e o controlo não são inteligíveis. 

O suicídio é visto como uma forma de lidar com o sofrimento, uma saída para aliviar a dor. O desespero torna-se insuportável. A cada dia, o sofrimento fica mais violento e viver torna-se angustiante. O suicida não sabe se quer morrer ou viver, deseja apenas fugir da dor, não quer acabar com a vida, mas sim com o sofrimento. 

Cometer suicídio é destruir uma ligação, que vai deixar um espaço vazio, onde não existem respostas, muitos menos coragem ou cobardia. 

Por vezes a vida parece curta, mas o caminho pode ser longo. Em tempos de intolerância, em que quase tudo serve de argumento e as possibilidades de diálogo permitem quebrar limites e ultrapassar barreiras, são importantes momentos de introspeção para perceber quem somos, de onde vimos e para onde vamos. Não há espaço para o lirismo contemplativo, a decisão de acabar com a própria vida não é individual, surge sempre de uma motivação, de um vazio coletivo. O suicídio pode ser um ato privado, mas não representa somente uma violência contra o próprio, mas também contra os demais. 

Saber escutar é uma força poderosa nas relações humanas. Muitas vezes não necessitamos de encontrar soluções para os problemas dos outros, apenas aprender a ouvir. Quando sabemos escutar, as pessoas conversam e refletem sobre seus conflitos e emoções, encontrando as respostas e as soluções dentro de si. 

No dia 10 de setembro assinala-se o Dia Mundial da Prevenção do Suicídio. Se é verdade que o sofrimento existe, também é certo que haverá sempre um céu estrelado, uma lua crescente, um sol a cada novo dia para ser contemplado. A vida está sempre em transformação. O melhor ainda está para vir. Tudo chega com o tempo. 

“Às vezes ouço passar o vento; e só de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido”. (Fernando Pessoa)

É agosto. 

Mais contido e distante, trouxe consigo lembranças de agostos passados. 


Os amantes da astronomia voltam a procurar no escuro céu a conhecida "chuva de estrelas ou de Perseidas”. Também para estes, agosto não será igual. Além da Lua parecer estar amuada, a constelação de Perseu no horizonte noturno também não vai estar no melhor local para a observação. 

Agosto apresenta-se no seu esplendor. Sinónimo de férias, família, amigos, esplanadas, passeios e praia. 

Todavia, estamos em 2020 e, se aparentemente existe uma normalidade que parece sobreviver ao toque do cotovelo, agosto será diferente. Sem festas e romarias, sem festivais de verão, sem muitos imigrantes que não puderam regressar ao seu País, agosto sobrevive, escondido por de trás das máscaras que nos cobrem os rostos, escondem os sorrisos e mascaram os afetos. 

Ainda assim é agosto e através da desordem que bruscamente se instalou nas nossas vidas, conseguimos crescer, tornámo-nos resilientes e chegámos até aqui. 

Viktor Frankl, psicoterapeuta que sobreviveu a Auschwitz e escreveu o livro “O Homem em Busca de um Sentido”, já dizia as sábias palavras: «quem tem um “porquê?”, enfrenta qualquer “como?”». 

Ainda estamos em agosto, cheira a maresia e a gin tónico, como que a brindar a vida que nos presenteia. Aproveitemos para sonhar, fazer planos, mas agosto é hoje! Amanhã já será setembro.


Sempre ouvi dizer que para conhecermos os amigos é necessário passar pelo sucesso e pela desgraça. No sucesso, verificamos a quantidade e, na desgraça, a qualidade. O projeto Europa é uma utopia, no sucesso somos todos bons amigos, na desgraça, fugimos com “o rabo à seringa”. 
No fim do Conselho Europeu extraordinário, na passada quinta-feira, para discutir a reação europeia à crise do novo coronavírus, António Costa mostrou-se bastante exasperado com a reação de alguns países. A Holanda, mais uma vez, não se portou bem, mostrou claramente o que não se espera da Europa, agindo numa clara antítese ao que deverão ser os valores europeus. O ministro das Finanças holandês, Wopke Hoekstra, em desacordo com a ideia dos coroabonds referiu que alguns países da União Europeia tinham acumulado reservas, enquanto outros, como a Itália e a Espanha, não o tinham feito. Numa declaração cáustica e rara entre líderes europeus, o primeiro-ministro português classificou esta atitude de “repugnante" e "mesquinha". Costa foi duro? Não. Foi reto, justo e acima de tudo deu uma lição de solidariedade àqueles que acham que a Europa é um fantoche que cada um pode usar quando e como lhe der jeito. Há muito que os valores europeus estão ultrapassados, há muito que alguns países se consideram prima-donas. Este deverá ser o momento para a Europa concretizar os valores que defende, enfrentado unida uma crise sem precedentes ou deixando-se minar pelos habituais “frugais”. 

Não nos esqueçamos que esses países ditos "frugais" ou "forretas" são dos que mais beneficiam economicamente da existência de um mercado único europeu e esquecem-se que esse ganho ultrapassa largamente o valor das suas contribuições para o quadro financeiro plurianual. Mas, mais do que isso, esses “frugais”, os mesmos que querem cortes maiores na política da coesão e na política agrícola, os mesmos que se mostram irredutíveis perante uma pandemia que assola o mundo e que, como António Costa bem disse, não foi criada nem importada por Espanha, estão entre os que mais beneficiam per capita em termos líquidos da existência do mercado europeu. Muito mais do que Portugal ou Espanha, por exemplo. 

Costa esteve à altura, mostrando que já não aguenta mais insolências vindas da Holanda, realçando ainda que "essa mesquinhez recorrente mina a UE e é uma ameaça à própria UE". Como que trilhada na garganta, o primeiro-ministro português recordou ainda a insinuação de Jeroen Dijsselbloem, o antecessor de Hoekstra, quando se referiu aos países do sul sugerindo que gastavam o dinheiro em copos e mulheres. O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, colocou-se, e muito bem, ao lado do primeiro-ministro, mostrando que Portugal já não tem paciência para lições holandesas. Numa atitude de líder, António Costa não se inibiu de reforçar: "Já era insuportável trabalhar com o sr. Dijsselbloem, mas há países que insistem em mudar os nomes, mas em manter pessoas com o mesmo perfil". 

Tempos difíceis exigem medidas firmes. Mas as pessoas terão de estar sempre em primeiro lugar. A humanidade luta pela sobrevivência, e cada um terá de fazer a diferença, mesmo quando todos somos chamados a intervir. 

Hoje o Papa Francisco rezou pela Humanidade, numa cerimónia transmitida a partir da praça de São Pedro, impressionantemente vazia, encharcada pela chuva, envolta num anoitecer, que se estendeu para o resto do mundo 

“Desde há semanas que parece o entardecer, parece o cair a noite. Densas trevas cobriram as nossas praças, ruas e cidades; apoderaram-se das nossas vidas, enchendo tudo de um silêncio ensurdecedor e de um vazio desolador, que paralisa tudo à sua passagem: pressente-se no ar, nota-se nos gestos, dizem-no os olhares. Revemo-nos temerosos e perdidos.” 

O Papa terminou esta oração dando a bênção em várias direções, e os sinos da basílica ecoavam pela praça e pelos nossos corações. A Praça de São Pedro, sempre repleta de multidões, continuava assustadoramente vazia, mas lavada pela chuva, como se a nossa vida fosse assim renovada, através de uma oração abençoada. 

No contexto atual, de apreensão e incerteza, também a Europa não pode ficar aquém daquilo que os cidadãos esperam dela. Deve ter uma posição clara e de liderança porque esta crise é de todos, incluindo alemães, holandeses, finlandeses e austríacos. 

Se num mundo inevitavelmente conectado, António Costa mostrou que a solidariedade deverá ser a política central, o chefe máximo da Igreja Católica lembrou que “Estamos todos neste barco. É tempo de reajustar a vida. Ninguém se salva sozinho.” 

PS - Sou apartidária e uma não especialista em assuntos económicos.

Estranha forma de vida esta que nos faz estremecer perante a calma aparente que se vislumbra pelas nossas cidades, ruas e até mesmo na nossa esfera de amigos. O silêncio torna-se avassalador, alguém que se aproxime de nós é visto como um estranho ou um suspeito. O simples ato de tossir tornou-se numa ofensa nunca antes vista. Desconfiamos de todos e todos desconfiam de nós e esta desconfiança mantém-nos prisioneiros de um inimigo invisível. 

Habituados a traçar o nosso caminho e a ter tudo sobre controlo, encontramo-nos no meio de uma encruzilhada que não sabemos para onde nos levará. Mais do que nunca, o mundo paralisou perante o vírus do medo, o Covid-19, que originou a maior pandemia do século XXI. Voltemos à encruzilhada. Um caminho leva ao desespero. O outro à total incerteza. Teremos nós sabedoria para saber escolher? Além dos aspetos sociais e psicológicos, que danos infligirá à Economia, à Democracia, à Educação e à Saúde? 

Num gesto simbólico, milhares de portugueses, em isolamento em casa, foram até às suas varandas ou janelas homenagear e agradecer aos profissionais de saúde, pelo trabalho desempenhado nas últimas semanas no combate à Covid-19. Os portugueses responderam em massa, através do apelo nas redes sociais "#SomostodosSNS". Duas lições a retirar: o Serviço Nacional de Saúde e os seus profissionais, tantas vezes criticados e censurados, estão agora na linha da frente; numa era de solidão digital em que há, cada vez mais, quem viva de “likes” e do número seguidores, as redes sociais, consideradas por muitos como uma espécie de “epidemia” dos tempos modernos, poderão agora ajudar a mitigar a solidão social.

Haverá um antes e um depois Covid-19. A Humanidade é dizimada por uma guerra mundial sem precedentes, em que todos parecem ser vencedores e vencidos. A 31 de dezembro de 2019, a Organização Mundial de Saúde dava conta de que mais de duas dezenas de casos de pneumonia de origem desconhecida tinham sido detetados na cidade chinesa de Wuhan, na província de Hubei. Tratava-se então de uma doença anónima e distante, que infetava e matava pessoas do outro lado do mundo. Quase três meses depois, sabemos que o vírus não respeita fronteiras e as fronteiras também não respeitam o vírus. Entre os infetados há ministros, escritores, atores, médicos, treinadores, atletas. Transcende as barreiras sociais e afeta todos os dias novos países e territórios. Estamos numa guerra à escala global.

Segundo dados publicados na Direção Geral de Saúde (DGS) já existiam mais de 180 mil casos confirmados (em 16/03/2020), mais de 7000 mortos, em 148 países, áreas ou territórios. O número de infetados em Portugal pelo novo coronavírus subiu para 448 e existem mais de 3500 casos suspeitos. Números estes que aumentam a uma velocidade incontrolável e que daqui a dias estarão completamente ultrapassados. A ser decretado o estado de emergência será a primeira vez que tal acontece no Portugal democrático, pós-25 de Abril.

A ministra da Saúde, Marta Temido, tem repetido que para evitar a propagação do surto é fundamental que todas as pessoas respeitem as indicações das autoridades de saúde. Por cá, alguns vivem revoltados contra aqueles que já se encontram em casa, em teletrabalho, desconhecendo que estes estão também a contribuir para os proteger. Outros preferem assobiar para o lado, esquecendo-se de que a responsabilidade social significa um compromisso com a vida, a nossa e a dos que nos rodeiam. Dizem que os ignorantes são mais felizes!

Se vivêssemos na antiguidade, a explicação para esta calamidade seria facilmente atribuída à ira divina dos deuses, ou às porfias da natureza. Hoje o Covid-19 põe-nos à prova, testa a nossa capacidade de resiliência. Atira-nos para dentro da própria família, criam-se laços dentro dos lares que há muito não existam. O novo vírus devolve-nos o tempo atrás do qual todos corríamos freneticamente. Torna-nos prisioneiros da nossa própria liberdade e mostra-nos de uma forma demasiado dura que a Humanidade será aquilo que fizermos dela. Ironicamente, surge como um antídoto para o nosso próprio veneno.

Atualmente, o Covid-19 está no centro das nossas vidas, e nós que eramos o centro do mundo passamos a ter o mundo inteiro dentro das nossas casas. Um mundo demasiado pequeno, mas carregado de afetos. Mas, o Covid parece não ter deixado nada ao acaso e alterou sem pudores relações e comportamentos. Não há nada mais gratificante do que o afeto, nada mais perfeito do que a reciprocidade dos mesmos, mas o caminho ainda é longo e exige muita, muita contenção.

Perder uma batalha não significa perder guerra, e a vida é constituída de muitas e incansáveis batalhas. E se estamos em plena batalha não nos podemos esquecer de que uma guerra nunca se vencerá lutando sozinho.